#27 Ensaio | Afinal de contas, o que é autoficção?
Uma conversa com Andreas Chamorro, que vem trazendo provocação sobre os limites (ou, melhor, não-limites) entre autobiografia e ficção há algum tempo.
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Por aqui, falo sobre literatura, processos criativos e escrita desde 2021.
Ao final de 2022, migrei para o Substack e, desde então, dedico esse espaço para falar do meu projeto, O Corpo de Laura, que venceu o primeiro lugar do Edital de Publicação em Poesia do ProAC (Programa de Ação Cultural da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Governo do Estado de São Paulo).
Em uma plaquete e um livro, O Corpo de Laura busca explorar as linguagens da poesia e da fotografia a fim de investigar as temáticas do Corpo, da Identidade e da Linguagem no contexto do corpo feminino.
Nesta newsletter, quero compartilhar com você o meu processo com o projeto, refletindo também sobre a experiência de participar de um Edital.
Afinal de contas, o que é autoficção?
Com alguma frequência escuto que há sempre um pouco de nós mesmos, mesmo que seja um resquício mínimo, na nossa escrita. Apesar da fala parecer boba, ela não deixa de ser verdadeira. Os grandes romances da ficção científica, por exemplo, partem de uma inquietação pessoal daquele autor sobre o momento em que vivia, denunciando sua perspectiva de futuro e, em alguns casos, seus valores morais.
Há, ainda, a escrita, sem querer, de algo que depois se prova muito verdadeiro à vida do autor. Algum fato que ele esqueceu e acreditou estar contando alguma invenção, mas, depois, lembrou-se daquilo como real. Acontece muito, afinal, a escrita também parte da memória.
Hoje, quero escrever em conversa com
, que vem trazendo a provocação sobre os limites (ou, melhor, não-limites) entre autobiografia e ficção há algum tempo em sua newsletter. Afinal de contas, o que é a tal da autoficção? Seria ela uma tendência narcísica da literatura contemporânea? Ou uma forma de fortalecer e vocalizar existências dissidentes? Ou, ainda, uma maneira preguiçosa de compormos nossos projetos de escrita?Essa discussão me lembra um pouco o uso do termo "confessional", utilizado anteriormente para descrever literatura (principalmente, a escrita por mulheres) que traz um tom mais pessoal. Atualmente, entende-se que ele seria misógino ao sugerir que as mulheres seriam incapazes do ofício de ficcionalizar e inventar histórias, sendo o mero desabafo o único sustento e possibilidade de sua literatura.
Na autoficção, o que se tem é uma perspectiva mais atualizada, mas que também gera muitos olhares tortos. Comparada à dita literatura confessional, a autoficção se diferencia justamente por elencar uma ficcionalização da própria vida, de um determinado acontecimento, etc. O autor não está relatando de forma fiel e nem desabafando, e sim transformando uma narrativa - seja a partir de um outro ponto de vista; do uso de recursos surrealistas ou do realismo mágico; do trabalho em cima dos personagens, etc - tal qual se faz com uma história ficcional qualquer.
Quando falamos em poesia, porém, a autoficção é um termo ainda mais delicado - primeiro, porque a poesia não se presta a ser necessariamente narrativa, e, segundo, porque a poesia é o espaço do "eu", do "eu-lírico". Enquanto o romance traz uma trajetória e o teatro dramatiza um acontecimento, o poema está ali, relevando o eu e seus pensamentos, suas percepções, etc. Seria toda poesia autoficção ou autobiografia, então?
Já manifestei por aqui a relevância da escrita criativa como motor de elaboração subjetiva e política, e a autoficção tem a capacidade de moldar o indizível, tornando-o não mais pessoal, mas algo que pode tocar o outro.
Em O Corpo de Laura, há uma progressão narrativa que lança luz à ideia da autoficção, sendo essa atravessada pela ambiguidade. Quem é Laura? Seria eu, Laura Palmer, nós duas, uma só, muitas? De quem é essa história? Na realidade, talvez, o grande triunfo da autoficção seja a possibilidade dessa ambiguidade, já que estamos diante de fatos que não sabemos se são ficcionais, se foram alterados, o que está em jogo.
Aliás, como já comentei, a brincadeira do título do livro é justamente a possibilidade de se fundir a mim, a autora. E se, ao invés de Laura, a personagem se chamasse Helena? Ou Luísa? Claro, estamos falando também da inserção da personagem Laura Palmer na narrativa, o que impossibilita a troca do nome da protagonista. Ao mesmo tempo, essa história também poderia muito bem ter um outro nome, pertencer a outra mulher.
Durante o processo de escrita do livro, um dos meus alicerces era uma tentativa de "sair de mim", tendo a ficcionalização como ponto de partida. Fui descobrindo que essa ficcionalização cria ambiguidade, permitindo que uma narrativa deixe de ser "do autor" para tornar-se também do Outro.
Um exemplo bastante atual desse tipo de narrativa é, certamente, a escritora francesa Annie Ernaux (também citada pelo Andreas), cujos romances enxutos se dedicam a contar fatos reais de sua história, seja um aborto ("O Acontecimento") ou a relação com o próprio pai ("O Lugar").
Apesar de bastante autobiográfica e de não apelar para recursos imaginativos, a obra de Annie Ernaux merece o reconhecimento que possui ao elaborar sua própria história a partir de uma espécie de autoetnografia, em que investiga os aspectos sociológicos, políticos e culturais de suas narrativas - a partir, ainda, de uma escrita que, diferente de O Corpo de Laura, não faz questão de se dedicar ao artifício da forma, mas de prestar a uma narrativa acessível e comprometida com a análise da realidade, ou seja, que sai do eu. Dessa forma, temos em mãos não um desabafo, mas um estudo de formação.
Essa, talvez, seja a definição que mais gosto para a autoficção: um estudo formativo. Seja do tempo, da própria história, de um lugar social. Trata-se da tentativa de se colocar no mundo, de imprimir, analisar e remoldar a própria narrativa. Acima de tudo, um exercício importante em entender-se enquanto escritor, quase como que se lançasse à pergunta - o que nos é possível com a palavra? Ou: o que ela é capaz de fazer à nossa história?
Apanhadão geral da semana
Na mídia:
Live A Fim de Poesia (gravação): https://bit.ly/3Q3Ot1Q
Live Jornal Nota (gravação): https://bit.ly/46DNlZM
Resenha de O Corpo de Laura na Cidade Poética: https://bit.ly/471fRo3
O Corpo de Laura na newsletter
: https://bit.ly/3Q3LdDuGrifo de poema na página da Aline Aimée: https://bit.ly/3FpQTCR
Nas redes:
Leitura de poema de "O Corpo de Laura" por Samara Belchior: https://bit.ly/404rnfU
Como comprar: https://bit.ly/3tMtXuU
O Corpo de Laura indica
PLAQUETE: Pra não ser de plástico, quero ser bruxa, de Samara Belchior (Primata)
Em sua segunda publicação, a poeta e professora Samara Belchior explora mais afundo questões ligadas à corporeidade humana em relação ao meio-ambiente, sendo uma obra bastante urgente, explorando seus impactos no contexto afetivo e social, evocando também o feminino e suas vicissitudes. A plaquete conta com uma interessante experimentação da linguagem, em que os poemas vão se concebendo a partir da exploração da mancha gráfica. Pra não ser de plástico quero ser bruxa faz parte da nova coleção de plaquetes da Editora Primata.
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LANÇAMENTO: O Livro dos Espelhos, de Marianna Perna (Selo Auroras)
Segundo livro-disco da poeta, performer e pesquisadora brasiliense Marianna Perna, O Livro dos Espelhos é resultado de uma pesquisa multidisciplinar envolvendo o objeto espelho a partir da poesia, da fotografia e da música. Com poemas densos e evocativos, o livro se propõe a investigar o espaço do “eu” a partir tanto de eixos positivos, como o auto-reconhecimento, como a partir da ausência.
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