#29 Especial Halloween | Do terror à beleza, do sobrenatural ao real
Comentários sobre o insólito e o sombrio como alternativas políticas às vozes dissidentes
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Por aqui, falo sobre literatura, processos criativos e escrita desde 2021.
Ao final de 2022, migrei para o Substack e, desde então, dedico esse espaço para falar do meu projeto, O Corpo de Laura, que venceu o primeiro lugar do Edital de Publicação em Poesia do ProAC (Programa de Ação Cultural da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Governo do Estado de São Paulo).
Em uma plaquete e um livro, O Corpo de Laura busca explorar as linguagens da poesia e da fotografia a fim de investigar as temáticas do Corpo, da Identidade e da Linguagem no contexto do corpo feminino.
Nesta newsletter, quero compartilhar com você o meu processo com o projeto, refletindo também sobre a experiência de participar de um Edital.
Especial Halloween | Do terror à beleza, do sobrenatural ao real
O horror se instaura nas nossas narrativas - especialmente no que diz respeito aos corpos dissidentes - de forma hedionda e avassaladora. Basta atentar-se um pouco ao que vem (e sempre vem) sendo relatado nos noticiários diariamente: guerra, fome, pobreza, morte, assassinato.
Acompanhando a jornada da crítica literária Aline Aimée por autoras como Leonora Carrington, Mariana Enriquez e Patti Smith, fica escancarado o fato de que, na literatura, o retrato dessas violências sociais - muitas vezes sob artifícios próprios do sobrenatural - ganha outro aspecto, mas não deixa de estar calcado no real. Muito pelo contrário: na ficção insólita dessas mulheres, as realidades e vozes apagadas ou marginalizadas ganham, pela primeira vez, protagonismo.
Deste modo, fica evidente que a construção do horror não necessariamente precisa estar relegada ao mero "choque" ou à desumanização, mas a um fazer crítico. Ao jogar com o medo, ou melhor, ao possibilitar a sua expressão, produz-se autonomia às narrativas dissidentes, focando em suas transformações internas ao invés de somente relatar as violências que as acometem.
Enquanto escritora, o que me surpreende é como essa atmosfera aterrorizante é concebida, que pode ser tudo, menos óbvia. Em Space Invaders, por exemplo, Nona Fernández se apropria do videogame homônimo como recurso elaborativo de um grupo de crianças durante a Ditadura de Pinochet, criando uma narrativa em que o Trauma, com letra maiúscula, é tratado sob sua máxima: seja pela fragmentação da memória, seja pela sensação claustrofóbica de que há algum elemento oculto, misterioso, indizível no ar.
Por outro lado, temos a literatura de Ariana Harwicz, que parece esfregar na cara do leitor todas as tragédias e tabus que existem no mundo. Partindo do escatológico, sua "Trilogia da Paixão" nada mais é do que uma denúncia da verdadeira e complexa condição da maternidade, que vai do puerpério à falta de limites nos laços entre mães e filhos.
Nessas duas autoras tão diferentes entre si, o que se sobressai é, de fato, a transposição de um universo interno para a ficção, focando não necessariamente em uma tragédia pessoal, mas em criar uma linguagem capaz de dar conta de expressar o medo, a raiva, a frustração, etc, diante dos fatos sociais que, muitas vezes, nos inibimos (ou somos inibidos) de expressar, criando, assim, uma dimensão complexificada deles.
O que mais me chama a atenção em Ariana Harwicz, de fato, é a "falta de pudores" que ela tem na concepção e apresentação de suas personagens, que rompem integralmente com a postura imaculada atribuída à maternidade. Me parece que, ao lhes dar um aspecto monstruoso bastante extremado, ela abre espaço para a empatia e para a reflexão sobre o que há de sombrio nas relações de parentalidade.
Sombrio. Gosto bastante dessa palavra e dessa dimensão de criação. Acredito que ela permite penetrar as interfaces do possível, do real, em um personagem. Numa leitura feminista (e muito calcada em Teoria King Kong, de Virginie Despentes), podemos dizer que trazer uma personagem que também age de ma fé, tem defeitos, obscuridades, etc, é também conceber uma visão mais humana das mulheres - em especial àquelas que são sobreviventes de violência.
Trabalhar com o horror pode ser, portanto, uma maneira de subverter o espaço imaculado e inocente que é relegado às mulheres, que muitas vezes anula suas denúncias e sua subjetividade. Portanto, quando resolvemos apresentar as entrelinhas de uma narrativa, estamos clamando o direito à integração de vozes dissidentes.
Em O Corpo de Laura, fiz questão de criar uma personagem cujo lado sombrio também pulsa, principalmente na Seção III - Fúria, onde nos damos conta que os danos causados à Laura a transformaram em uma jovem hipersexualizada, instável e manipuladora, tal como seu duplo, Laura Palmer. Entretanto, o início do livro também busca esse horror, talvez de forma menos aparente, como, por exemplo, ao colocar a Beleza e o Terror diante do ranger de um balanço; ao apresentar a voz da mãe como uma espécie de fantasma; ao trazer elementos religiosos para descrever um abuso; ao criar uma fragmentação do pensamento; as fotografias como a atmosfera e rompimento; o plástico como metáfora para o assustador fenômeno da despersonalização.
Talvez este seja o elemento mais observado no que tange à cronologia da personagem - a plasticidade perturbadora e visceral do próprio corpo, sem vida e ao mesmo tempo produto da utilidade dada pelo Outro, ou melhor, pelos homens que passam por sua vida.
Antes de ter passado pelas leituras beta e crítica, o entendimento do plástico como elemento da narrativa não era muito forte, curiosamente, e fiquei realmente assustada ao perceber sua repetição no texto. Afinal, de onde eu havia tirado isso? Por que o plástico? Será culpa de Laura Palmer, cujo corpo é encontrado embalado, ou tem algum outro significado que eu nunca me toquei?
Será a criação do horror, então, um produto do inconsciente? Uma voz que deixamos passar, assim, e que se manifesta, sem nos darmos conta, dentro do texto?
Apanhadão geral da semana
Nas redes:
Leitura de poema de "O Corpo de Laura" por B de Barbárie: https://bit.ly/3sgUPDa
Resenha de "O Corpo de Laura" no Instagram da Aline Aimée: https://bit.ly/3Mpr8X4
Resenha de "O Corpo de Laura" no Instagram da B de Barbárie: https://bit.ly/3tZMioz
O Corpo de Laura indica
PRÉ-VENDA: Sem os dentes da frente, de André Balbo (
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Sem os dentes da frente é o novo livro de contos do escritor e editor paulistano André Balbo. Fortemente inspirado pelo insólito latino-americano de Mariana Enriquez, a obra possui orelha de Cristhiano Aguiar. O livro está em pré-venda pela editora Aboio até o dia 08/11.
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NÃO-FICÇÃO: Louise Bourgeois e Modos Feministas de Criar, de Gabriela Barzaghi de Laurentiis (Sob Influência)
Investigando a obra por vezes perturbadora e assumidamente provocadora da icônica artista plástica Louise Burgeois, esta pesquisa busca se enveredar de forma profunda e crítica para dentro da cronologia e dos aspectos políticos colocados ao longo de sua produção.
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