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Aqui, falo sobre literatura, processos criativos e escrita desde o início de 2021. Nessa nova versão, passo a usar esse cantinho com maior enfoque no meu novo projeto, O Corpo de Laura, que consiste na produção de uma plaquete e, posteriormente, de um livro, em que exploro as linguagens da poesia e da fotografia a fim de investigar as temáticas do Corpo, da Identidade e da Linguagem no contexto do ser mulher.
No ano passado, esse projeto foi contemplado no Edital de Publicação Inédita em Poesia do ProAC (Programa de Ação Cultural da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Governo do Estado de São Paulo) em primeiro lugar. Ou seja, o meu trabalho foi reconhecido e terá a sua publicação por meio de um Edital importante!
Desta forma, penso a newsletter também como um espaço para partilhar o que venho fazendo com o projeto, sua execução, minhas reflexões, dúvidas e indagações. Além de suscitar novos diálogos partindo da discussão que proponho em O Corpo de Laura, também tenho interesse em aproximar a minha dinâmica com o ProAC com os leitores, trazendo de forma mais crua e detalhada a experiência de se publicar por meio de um edital.
Nesta news, edição especial ao Dia Internacional da Mulher, trago um ensaio a respeito de “O Corpo de Laura” dentro da luta das mulheres.
Vem comigo?
Nos últimos anos, uma das minhas principais inquietações vem sendo pensar no que pode a Linguagem dentro do contexto das mulheres, seja como poeta, seja dentro da academia. Vejo a escrita e a literatura como pilares centrais acerca do entendimento de mim mesma enquanto mulher, seja a nível político, seja a nível subjetivo. Este processo, que se dá numa instância criativa, me é tão poderoso que hoje sinto vontade de partilhá-lo com outras mulheres, de vivências e lugares diferentes.
Vejo a literatura - e as artes, num geral - como um campo possível à voz, algo também reforçado por Jacques Derrida, se não me engano. É exatamente dentro da criação que podemos afirmar aquilo que quisermos, torcer a realidade, dar nomes e corporeidades ao que sentimos. É no emprego da mentira que podemos ser o mais verdadeiros possível. E que podemos oferecer essa faceta ao outro, no ato da leitura.
Para as mulheres, isso é particularmente potente por estarmos, quase sempre, socialmente relegadas ao silêncio, ao apagamento e à falta de autonomia. Ainda somos vistas e encaradas sob a posição de um objeto, quiçá a costela do corpo de Adão. Os inúmeros constrangimentos, assédios e violências às quais somos submetidas diariamente simplesmente reforçam o lugar de submissão que devemos ocupar.
Por isso, quando uma mulher se compromete com o papel à sua frente - talvez até de maneira privada, como num diário - ela está expondo ali o que não pôde falar. Mesmo de maneira encriptada, mesmo que ela não se dê conta. Aquele texto é o único lugar onde esta mulher pode ser para si mesma, sem a necessidade de se mascarar para o mundo.
Isso é particularmente interessante se pegarmos - como analogia - o diário secreto de Laura Palmer em Twin Peaks. É neste caderno vermelho que ela anota seus verdadeiros desejos, medos e sombras. De certa forma, é neste espaço que ela consegue se integrar enquanto indivíduo, pensando que ali estão borradas as fronteiras entre suas personas. Ao mesmo tempo, observo descoberta do diário pelo agressor de Laura como um dos eventos que antecedem seu assassinato.
Podemos deduzir, daí, que 1) a perda do diário representa uma vulnerabilidade maior de Laura Palmer, visto que ela não possui mais um mecanismo de integração saudável e, 2) o conteúdo do diário poderia incriminar o agressor. Deste modo, o silenciamento traz a consequência da perda de um espaço de elaboração; e a elaboração pode ser um caminho para o desvencilhamento do ciclo traumático no qual Laura se encontra.
Esta percepção da escrita como movimento integrativo e de elaboração psíquica também surge, fui descobrir depois, em muito da nossa poesia brasileira contemporânea. Na minha pesquisa de TCC, observei que os poemas de Adelaide Ivánova em O Martelo também operam numa reintegração do sujeito, sendo ressaltada também a forma e a condução da autora dos textos, que se sobressaem enquanto singulares tanto pelo estilo de versificação quanto pelo emprego do repertório temático. Ou seja, a construção de uma voz singular também é uma maneira de confronto às narrativas dos padrões sociais de gênero.
Note que, até este momento do ensaio, analiso a produção de outras mulheres. Isto porque a busca por uma voz própria, autoral e autêntica, dentro do contexto social das mulheres, fura uma bolha individualizada. E talvez este seja o aspecto mais importante desta literatura: não se limitar ao Eu. Esse recurso da escrita como um espaço da identidade também perpassa um território político. É importante que nós, mulheres, não nos vejamos dentro da narrativa default que os homens nos relegam.
Mas, ao mesmo tempo, é necessário compreender que há um potente diálogo nas nossas vozes e histórias. Colocar-se sujeita nesse mundo também é um processo que visa o atravessamento - ele permite que as outras possam se encontrar e se expressar a partir da nossa própria complexidade, bem como o processo inverso, de se ver na complexidade da outra e encontrar caminhos a partir daí.
Quando escrevo sobre este assunto, sinto que nunca chego numa conclusão. Acredito que é porque dificilmente falo do meu próprio processo. Entendo, porém, que só me enxerguei escritora aos 20 anos (mesmo escrevendo desde os 12) depois de devorar a Tetralogia Napolitana, de Elena Ferrante.
Depois, essa noção ficou mais complexa quando conheci a história de Laura Palmer - que, mesmo se escondendo sob personas distintas, era apresentada em sua maior intimidade nas telas do filme Twin Peaks: Fire Walk with Me (1994): uma jovem em profunda fragmentação, tateando os cacos deixados pelo trauma. Isto porque mergulhamos no inconsciente mais denso de Laura, em seus simbolismos.
Podemos dizer que toda a realidade de Twin Peaks é recriada e recontada a partir destes simbolismos, numa espécie prática do exercício ficcional primário que Antônio Cândido chama de “fabulação”. Para o crítico, na verdade, a fabulação é a necessidade humana de ficção.
Deste modo, quando há um silenciamento coletivo da narrativa das mulheres, há também uma ruptura no que tange à fabulação. Somos impedidas de criar uma acepção ficcional do real porque somos silenciadas. Ou, retomando a história do diário de Laura Palmer, porque esta fabulação configura um perigo à dominação masculina.
Gosto de pensar, inclusive, que mantendo o diário talvez ela pudesse ter sobrevivido. Escrever, mentir, fabular - todas estas palavras nos mostram este campo como uma chance de criar novas histórias para nós e para os outros, num processo que, ao mesmo tempo, é profundamente elucidador e emancipatório. O Corpo de Laura, para mim, surge daí - dessa possibilidade de me fantasiar na história de Laura Palmer, ou o contrário. Posso dar voz a essa personagem, posso recuperar seu diário e posso contar a sua história sob seu disfarce, que, na verdade, vai se revelando enquanto uma ferramenta para que eu possa investigar as minhas mais cruas e íntimas inquietações sobre o mundo.
Apesar de não apostar tanto na ideia da arte como algo que salva (nós não estamos falando de medicamentos), ainda acredito na escrita como a possibilidade de criar, torcer e recriar o nosso mundo, rompendo o acordo primordial do patriarcado - o silêncio das mulheres. Aqui, talvez não haja um terreno capaz de abolir todas as coisas ruins do mundo, mas liberdade para tecer o pensamento sobre aquilo que nos incomoda e cumplicidade para poder elevar esse pensamento a uma esfera coletiva.
Para finalizar o texto, portanto, convido as mulheres que estão lendo isso ao ato da escrita hoje. Não precisa ser um texto bonito ou publicável, mas um rompimento. Sobre o que lhe for caro. Não precisa me mostrar, também. Apenas pense, de corpo inteiro - qual o mundo que quero criar agora, neste exato momento?
REFERÊNCIAS & INDICAÇÕES SOBRE O TEMA:
CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: ___. Vários Escritos. 5 ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul/ São Paulo: Duas Cidades, 2011. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3327587/mod_resource/content/1/Candido%20O%20Direito%20à%20Literatura.pdf
DERRIDA, J. (2012). Uma certa possibilidade impossível de dizer o acontecimento. Revista Cerrados, 21(33). Recuperado de https://periodicos.unb.br/index.php/cerrados/article/view/26148
GRAHAM, D. L.; RAWLINGS, E. I.; RIGSBY, R K. Amar para Sobreviver. Tradução de Mariana Coimbra. 1ª Edição. São Paulo: Editora Cassandra, 2021
IVÁNOVA, Adelaide. O Martelo. Rio de Janeiro: Garupa Edições, 2018
KAMENSZAIN, Tamara. Garotas em Tempos Suspensos. Tradução de Paloma Vidal. Círculo de Poemas, 2022.
MAGALHÃES, Danielle.Ir ao que queima: no verso, o amor, no verso, o horror —Ensaios sobre o verso e sobre alguma poesia brasileira contemporânea.Tese (Doutoradoem Ciência da Literatura — Teoria Literária) — Faculdade de Letras, Universidade Federaldo Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, p. 361–388. 2020.
TWIN Peaks, Fire Walk With Me. Criadores: Mark Frost, David Lynch. 1992.
REDFERN NAVARRO, Laura. PALAVRA É PAISAGEM: TERRITORIALIZAÇÃO DO SUJEITO E DO COLETIVO NA ESCRITA. Revista Grifo, 2a edição. Disponível em: https://medium.com/revistagrifo/palavra-é-paisagem-territorialização-do-sujeito-e-do-coletivo-na-escrita-241e41a305d3
Tenho começado a mexer um pouco no projeto do livro O Corpo de Laura. Além do processo de reasisstir à série, tenho mexido em alguns poemas e, principalmente, coletado epígrafes e pontos importantes do que quero abordar em definitivo.
Esta é a etapa do processo que chamo de “Imersão”, tendo uma pegada mais de pesquisa e de rascunhar o que será feito. Mais para frente, as etapas são de “Produção” e de “Leituras Externas”. Organizei todas as etapas já num mapa mental, e anotei num caderno também o que venho pensando (rascunho).
Como estou imergindo, não tenho muitas coisas preciosas (por assim dizer) para comentar. Estou me permitindo sentir. Mas confesso que minha segunda experiência com a série tem sido diferente, talvez pela minha visão mais amadurecida, talvez por me atentar à alguns detalhes que antes não passaram por mim. Acho gostosa essa etapa de reavaliação. E acho gostoso o cuidado que ela exige, também.
AÇÕES #8M:
#01 - LAMBES #REVOGALAP 2023, de Sangra Coletiva
A Coletiva Sangra vem organizando diversas articulações para o 8 de março, em especial voltados à Revogação da Lei de Alienação Parental, legislação que vem permitindo e colocando panos quentes sobre casos de abuso sexual infantil. Uma das ações propostas pela Coletiva é a distribuição de lambes pelas cidades a fim de promover a educação e a pressão, dentro do Congresso, para a revogação da lei. Todos os pôsteres e materiais foram disponibilizados em uma pasta pública do Google Drive.
Acesse a pasta aqui: bit.ly/3KZyfpk