#25 Edição especial | Setembro Amarelo
Palavra, mulheres e saúde mental | ou: como a poesia me ensinou a dançar perante ao abismo (um ensaio)
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Por aqui, falo sobre literatura, processos criativos e escrita desde 2021.
Ao final de 2022, migrei para o Substack e, desde então, dedico esse espaço para falar do meu projeto, O Corpo de Laura, que venceu o primeiro lugar do Edital de Publicação em Poesia do ProAC (Programa de Ação Cultural da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Governo do Estado de São Paulo).
Em uma plaquete e um livro, O Corpo de Laura busca explorar as linguagens da poesia e da fotografia a fim de investigar as temáticas do Corpo, da Identidade e da Linguagem no contexto do corpo feminino.
Nesta newsletter, quero compartilhar com você o meu processo com o projeto, refletindo também sobre a experiência de participar de um Edital.
Palavra, mulheres e saúde mental | Ou: como a poesia me ensinou a dançar perante ao abismo*
*Ensaio revisado por Marcela Güther
Poesia como corporeidade. É assim que venho lidando com a poesia desde que O Corpo de Laura começou a ser fecundado. A linguagem não distante da experiência dos sentidos e a palavra como maneira de recosturar essa experiência, quando ela parte de uma dissidência, de uma desintegração, de uma impossibilidade. Tenho entendido também como esse manejo da língua pode ser libertador, em especial quando falamos de um certo sofrimento psíquico, de um abismo, da dor que vem da incapacidade de nomear.
Ao final de 2020, quando tive meu primeiro contato mais aprofundado com a literatura contemporânea, também foi a primeira vez que senti a palavra Mulher atravessar todo o meu corpo — algo fantástico e ao mesmo tempo cruel. Fantástico por me fazer ter consciência face às performances de gênero nas quais me apoiei ao longo da vida. Cruel por me fazer encarar os motivos daquela interminável performance. Ou por entender o porquê de me ser exigido silêncio.
Em tempos pandêmicos, onde o luto e o encontro com a própria sombra foi inevitável, percebi que essa autopercepção enquanto mulher não se deu de forma solitária. Inquieta, fui atrás das outras narrativas de mulheres, notando que minha experiência não era aberrante, mas algo que habitava a cabeça e a memória daquelas que não se encaixavam.
Que são todas as mulheres, no caso.
Duas dessas histórias, particularmente, chegaram a mim como se eu encontrasse alguém que falasse a minha língua: 1) Laura Palmer, do seriado Twin Peaks, de David Lynch e Mark Frost (que não é poesia no sentido estrito, embora também não deixe de ser); e, 2) a poesia de O Martelo, de Adelaide Ivánova. Algo naqueles encontros sublimava: as duas eram como minhas velhas amigas, pessoas que me contavam sua vida e que, de repente, me encaminharam a uma epifania.
Falando primeiro de Laura Palmer, que tem o mesmo nome e um fenótipo similar ao meu. Em sua história, não há espaço para o meio-termo. Estamos em vertigem, diante de uma jovem aparentemente padrão, que supostamente leva uma vida comum, mas que, a todo tempo, está buscando sair do seu próprio inferno. Trata-se de uma vida em cacos, um corpo que patina em cima de performances de gênero para sobreviver. Corpo esse cujo único refúgio era um diário, que foi roubado e destruído pelo maior pesadelo de Laura Palmer (como já comentado em outra edição).
Já no caso de Ivánova, o eu-lírico de O Martelo não busca esconder-se por trás de bons modos ou gestos delicados. Aqui, acompanhamos a trajetória de uma mulher que, assim como Palmer, é violentada e repartida. Fica na nossa memória, porém, o eu-lírico de uma mulher "da vida", que gosta do bar e da farra - tal como uma das máscaras de Palmer, mas que, diferente dela, não faz muita questão em esconder suas frivolidades e contradições. Ainda que ser assim custe — ou, ao menos, lhe é dito que custa — o valor de sua denúncia.
Neste momento inaugural, vejo duas mulheres quebradas, instáveis, enfurecidas. Tanto no poema quanto no cinema, sou espectadora em zoom de suas tragédias pessoais, tragédias essas que também me cercam de alguma maneira. Quando elas escrevem, rompendo o lugar de dissociação de si mesmas que lhes é brutalmente imposto, elas gritam.
Nós existimos, tá vendo?!
Na poesia contemporânea brasileira, historicamente, esse grito começa mais ou menos em 2012, com a publicação de O útero é do tamanho de um punho, da poeta gaúcha Angélica Freitas¹. Pautando temas como sexualidade, aborto e estereótipos de gênero, este livro inicia uma espécie de cochicho entre mulheres. Do lugar de musas, fomos para um Nossa, eu me identifico com esse texto. Depois, para um Nossa, a gente pode escrever sobre isso. E, por fim, A gente pode ir lendo e escrevendo, juntas, a nossa História.
Falar sobre relacionamentos abusivos, sobre maternidade, sobre aborto. Ainda que muito íntimas, a essas experiências ainda não nos é dado o direito de elaborar. Dou o exemplo da maternidade e do aborto, já que há um estereótipo das mães enquanto imaculadas sobre seus filhos, desconsiderando as condições materiais e emocionais da mulher que engravida, bem como a natureza compulsória da maternidade. Nesse caso, como romper com a narrativa hegemônica e elaborar uma história própria?
Defendo que, às mulheres, a escrita (e, principalmente, a ficção) seja um grande passo ao autocuidado e ao zelo pela nossa saúde mental. O processo criativo é político. Não quero dizer, porém, que se trate de um caminho fácil ou de "cura", que substitua a reivindicação por políticas sociais e de saúde das mulheres. Pelo contrário, venho pautando há muito tempo que, escrevendo, nós temos a possibilidade de elaborar nossas questões para além dos papéis sociais exigidos, pautando a urgência de sermos ouvidas e acolhidas por um sistema que corriqueiramente nos violenta.
Quando escrevemos, também encontramos espaço para elaborar, em maior profundidade, nossa subjetividade, experimentando ser para além das expectativas do outro. É ali que encontramos a nossa própria voz, criamos nossa forma de encarar o mundo, reinventamos as nossas narrativas. Criamos um mundo do jeito que gostaríamos que ele fosse. Na escrita, finalmente, há espaço para ser. Deixamos de ocupar o eterno espaço do Outro², ainda que numa tessitura ficcional. Ganhamos agência, autonomia, somos atravessadas pelas narrativas e fundamos a nossa própria. Construímos uma identidade³, um corpo para habitar.
Foi lendo e escrevendo que tive a possibilidade de me desatar da corda-bamba em que me erigi ao longo de quase duas décadas, sentindo a vida pulsar para além da cabeça. Fui descobrindo que processo criativo é sinônimo de solidez, de ter um chão. Primeiro, porque criei vínculos verdadeiros com outras mulheres, subvertendo a lógica patriarcal da competição e inimizade; segundo, porque criei uma história nova e uma forma de contá-la. E, assim, encontrei como possíveis o desejo e o deslumbre, mesmo no abismo, ou, melhor, para além dele.
Eu sou um [experimento]⁴ como escritora. A mim, só os temas já não bastam, preciso me construir também enquanto forma, como quem coloca à mesa a indagação por um idioma próprio do Corpo. Um idioma que comunique de fato a minha experiência, atravessada pela minha condição enquanto mulher e, principalmente, enquanto mulher neurodivergente . A objetividade e o falocentrismo da língua como a conhecemos não dá conta de comunicar a minha Verdade, mas, sim, velar a intensidade do meu Corpo.
Então, só me dirigindo minuciosamente aos seus vãos e impossibilidades é que encontro um jeito autêntico e estruturado de existir, algo que, de certa forma, também me constrói enquanto Sujeita, enquanto solidez, enquanto potência e, assim, tece uma possibilidade para o cuidado da minha própria saúde mental.
Por esse motivo, penso que, quando me encontro como escritora, me encontro como corpo antes de tudo. Essa possibilidade de ser tornou-se um compromisso tão forte para mim que acho extremamente importante passar esse movimento adiante. Já não sou tão fascinada e nem tão amedrontada quanto antes. Tenho menos crises. Sou mais inteira hoje. E toda vez que escrevo me conheço de novo. Eu sou um [experimento].
que vive que deseja e que deslumbra e que
lê & escreve como quem não teme mais nada
a fim de maquinar minhas colegas:
convocá-las a esse ofício perigoso, esse ofício capaz de re/fazer e remodelar o mundo a todo tempo.
Leituras complementares:
O Martelo, de Adelaide Ivánova
Twin Peaks: Fire Walk with Me, de David Lynch
Escrever, de Marguerite Duras
Desconstruindo Una, de Una
Fome, de Roxane Gay
Cheia, de Natália Zuccala
Amar para Sobreviver, de Dee L. R. Graham
Teoria King Kong, de Virginie Despentes
Um teto todo seu, de Virginia Woolf
Ir ao que queima: no verso, o amor, no verso, o horror, de Danielle Magalhães
Compêndio para Moças de Olhos Lânguidos, de Isabela Penov
Garotas em tempos suspensos, de Tamara Kamenszain
No Útero não existe gravidade, de Dia Nobre
A Escrita Curativa (vol. I e II), de Geruza Zelnys
REFERÊNCIAS:
[¹] As 29 Poetas Hoje, de Heloísa Buarque Hollanda
[²] O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir
[³] O Riso da Medusa, de Hélène Cixous
[⁴] O Corpo de Laura
O Corpo de Laura indica
AQUI NO SUBSTACK:
Sempre indiquei e vi Layla de Guadalupe como referência, e, agora, ela também produz uma newsletter interessantíssima a respeito da vida das mulheres. Pensando a urgência atual em torno da temática do direitos reprodutivos e sexuais, algo que ela vem abordando de maneira didática e propositiva, acho de extrema importância que esses conteúdos sejam lidos, repassados, aproveitados e continuem suas reflexões.
LANÇAMENTO: Perfeito Azul, de Tóia Azevedo
Investigando-se enquanto fronteira entre identidade, poesia, cinema e artes visuais, a plaquete Perfeito Azul, da baiana Tóia Azevedo, traz o duplo como aspecto central, dentro de uma construção que pode ser lida como um único poema longo. Vale destacar também a experimentação e visualidade do texto, característica muito bem arrematada, em especial quando os poemas simulam espelhamentos ou rupturas. Essa plaquete faz parte da nova coleção da Editora Primata, que vem trazendo outros autores e autoras bem interessantes.
🔗 conheça aqui: bit.ly/3rpwURo
Muitas questões para pensar, Laura! Gostei muito.